Espaço de atividade literária pública e memória cronista

sábado, 14 de junho de 2014

Figuras Típicas







Livro de Contos

(ESGOTADO)

Sorrisos de Pensamento - Colectânea de Lembranças Dispersas 

(editado em 2001)




A pedido de várias famílias, derivado ao original estar esgotado e entretanto algo ter entrado numa peça de teatro relacionada, retomamos a colocação, neste blogue, de mais alguns excertos do livro “Sorrisos de Pensamento”, desta vez para recordar o capítulo dedicado a antigas Figuras Típicas da área da Longra…


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IV

Figuras típicas

Em qualquer centro de convivência sempre existiram pessoas populares, assim como houve alguém popularucho. Facto normalmente provocado pela sua maneira de ser, no primeiro caso, ao que se apega constante presença e, no segundo aspecto, também por vezes inocência, patente sobretudo por comédias cómicas provocadas, entre muitas características castiças, sendo assim muito populares tais personagens que se tornaram figuras típicas do meio ambiente em que foram conhecidos.

Ficam pelos tempos fora na memória das pessoas esses intervenientes no quotidiano do passado, pelos mais variados motivos.

Não se trata, está bom de ver, quanto ao factor de registo, daquelas pessoas que pela sua labuta diária detinham certo respeito entre conterrâneos e conhecidos, como por exemplo o antigo Recoveiro Marinho, que trazia encomendas do Porto, a Milinha da Nota que todos os dias ia a pé à vila fazer recados conforme as solicitações, a Rosinha do Correio que tantos sacos levou às costas com encomendas da Estação do Correio local para um posto rural dependente, e mesmo o Zé Maria Pronto e o Zé Pomba que eram empregados do bar e ao mesmo tempo cobradores das cotas da Casa do Povo, como havia também o senhor Carlos do Unhão que cobrava cotas dos impostos aos proprietários rurais e vendia cautelas, ao que será de juntar ainda outro tipo de frequentadores dos círculos sociais mais apreciados, lembrando nesse ponto caso sintomático de um Parcídio da Capela, grande brincalhão e contador de histórias hilariantes. E outros que tais.

O tipicismo revela-se mais, porém, em figurantes que, ainda que passivos, foram e são falados em todos os quadrantes ou serviram de motes de divertimento.

Importa então para o caso focar, a lembrar tão só, figuras castiças. Porque na terra em que se passaram algumas histórias dignas de menção, por muito tempo que passe permanecem no imaginário colectivo alguns desses exemplares.

Em sentido relativo continua assim no vocabulário local o nome da Micas Pila, mulher do povo muito pobre de cabeça, segundo diz a transmissão popular. Oriunda de família de bens que se sumiram por entre os dedos, cujos membros se espalharam pela região ao ponto de haver inclusive em Felgueiras, sede concelhia relativamente próxima, uma fonte chamada do Pilo (por ali à beira ter existido tasca de um comerciante com esse apelido). Quando se augurava triste fim a alguma moça até se costumava dizer “ hás-de ser mais desgraçada do que a Pila”. Mas da qual uma senhora da freguesia, citada em célebres linhas de autor que faz parte de enciclopédias, terá dito que «essa infeliz, embora pobre e maltrapilha, tem ao menos marido para a acompanhar à missa...».

A tocar de certa forma o mesmo populismo, mais tarde houve versão de outro género com a Micas Crespa.
Com inocência que baste contam-se também histórias de um tal Tareta que, num Domingo de Ramos, em tempos de toda a gente levar ramos de oliveira para a respectiva benção na missa, levou ao ombro até à igreja uma pequena oliveira que cortara quase pelo pé... Além de ter ficado célebre a sua esperteza quando, rogado pelo Tenente Malheiro para apanhar as landes caídas das carvalhas no jardim de Valdomar de baixo, apanhava aquelas bolotas para fora do muro, deitando-as ao caminho sem o fidalgo saber, mas mal recebia o correspondente pagamento voltava a deitá-las dentro para voltar a ser chamado, depois, para o mesmo efeito!

Anos mais tarde começou a andar pelo centro da povoação central da zona o João Taranta, rapaz demente de juízo mas que não fazia mal a ninguém, antes querendo que o não chateassem nas suas andanças ao calha, a passar o tempo como gostava.

A sua presença assídua no Largo da Longra fez com que ficasse para a posteridade como presente às iniciais e improvisadas reuniões ao ar livre resultantes na fundação do clube de futebol da localidade. Alheio a tudo aquilo, esperando antes boa disposição dos presentes para lhe darem um cigarro, estava com efeito o João Taranta sempre à beira dos jovens, a tal ponto que se tivesse tino e soubesse escrever melhor que ninguém podia ter feito as primeiras actas do clube, por ter ouvido tudo o que era combinado e na altura não foi passado a escrito.

Este personagem típico, que só ia a casa para dormir, passava aliás todos os momentos de cada dia na Longra, vindo de Sernande logo pela madrugada e apenas regressava noite dentro, viciado em gostar de estar na povoação, correndo alguns lugares de uma ponta à outra durante uma parte do dia, sendo a maior porção do tempo para fazer companhia aos clientes das tascas do centro, com intermeios aos grupos conversadores do Largo. Aliás, com aquele típico “mascote” por companhia inofensiva, era dado um ambiente alegre às sessões de ocasião de roda de amigos e conhecidos.

Do que angariava durante o dia levava muita coisa mais tarde para casa, à noite, com o sentido no pai de que tanto gostava.

Costumava andar de bengala na mão, a cada passada levantando-a muito para a frente para depois a recolocar orgulhosamente no chão, num ritual obsessivamente rígido. De chapéu velho na cabeça e cigarro ao canto da boca, apagado pela saliva que lhe saía quando falava, o Taranta ia pelas casas abastadas a ver o que podia receber, a título gratuito pois não ia em conversas se lhe exigissem qualquer trabalho em troca. Era certo e sabido que rondava o sítio das sardinheiras, para levar sardinhas depois para casa, bem como pela Padaria no fito de conseguir um bocado de broa de milho. E era assíduo a esperar sempre à hora e dias certos a furgoneta do trigo de ovelhinha. Durante o dia tinha ainda o caldo sistematicamente dado pela Se’ Marquinhas, hábito que se foi mantendo quando, muitos anos volvidos, aquela loja passou para o Roberto. Os moços da escola, nos ínterins de atirarem aos pássaros com fisgas, praticarem caricatas disputas ao cóio e efectuarem improvisados jogos de bola, enquanto esperavam que o carro da “Senhora” (professora) surgisse, é que gostavam de o fazer arreliar, tirando-lhe a bengala e fazendo-o correr atrás deles, ao que ele barafustava esperneando e berrando de dentes cerrados, amuando depois... mas, mal a apanhasse, voltava descontraídamente ao seu ritual quotidiano.

Era muito religioso contudo, nunca faltando a quaisquer das cerimónias que se realizassem na igreja de Rande, em especial, mas de quando em vez ainda na de Sernande e até noutras de freguesias vizinhas. De uma das vezes, em que houve uma romaria numa freguesia mais acima, o João integrou-se na procissão daquela paróquia todo lampeiro, de bengala pousada no braço e muito senhor do seu nariz com entusiasmo, entre o povo, a cantarolar desgarrado um acompanhamento do cântico que era entoado pelo coro de vozes, cujo tom era então seguido por ele de forma muito desafinada e irregular até mais não. Todos os que iam em seu redor, nesse percurso, se iam a rir por entre dentes por terem de sufocar riso farto na circunstância. Então, vindo por ali abaixo, a padre daquela paróquia, que se fazia representar por outro que o substituía debaixo do pálio enquanto ele vistoriava os andamentos, chegou-se ao João Taranta e para o mandar calar desferiu-lhe uma estalada...

Dali em diante era ouvi-lo, o João Taranta nas suas desgarradas pelos caminhos, quando ia zangado, a entoar alto e explicado à sua maneira (cantando na música do “sacode o pó da saia”) o bom e o bonito daquele padre...!

Armando Pinto