Mais uma vez e na boa sequência de anos anteriores, neste
domingo último de maio houve uma participação de elementos do Rancho Infantil e
Juvenil da Casa do Povo da Longra nas Novenas a Santa Quitéria. Com apoio da
Junta da União de Freguesias de Pedreira, Rande e Sernande, que acompanharam o
grupo.
Com efeito, na comemoração anual da festa concelhia de Santa Quitéria, que tem dia próprio a 22 de maio, este ano a mesma foi assinalada festivamente no domingo seguinte, a 29/05/2022. E como de costume começando com a tradicional realização das Novenas a Santa Quitéria, antigamente de iniciativas privadas e caminhadas populares, mas agora, desde finais dos anos noventa do século XX, em organização municipal. A cuja tradição a região da Longra tem sido representada pelo Rancho Infantil e Juvenil da Casa do Povo da Longra, fundado a 5 de maio de 1994, também colaborante com tal realização a partir que passou a haver essa recriação oficial das Novenas, em 1999.
Assim sendo, desta representatividade mais recente
regista-se o facto com duas imagens, da saída da cidade de Felgueiras e chegada ao
santuário no cimo do monte de Santa Quitéria, do grupo de jovens atuais do
Rancho da Casa do Povo da Longra nas Novenas de 2022.
Como retrospetiva e enquadramento histórico, acrescenta-se
um remirar pela mesma tradição concelhia, com alguns laivos memorandos dessa
ancestral tradição.
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Em boa hora houve ideia de recriar
(em Maio de 1999) as antigas tradições das novenas a Santa Quitéria, numa
iniciativa tendente a recuperar essa ancestral manifestação de cunho religioso
popular. Realidade com que outrora eram “pagas” promessas e que nos tempos de
agora é trazida a público em revivalismo sadio, de reconhecimento devido ao
interesse com que já vão sendo tidas lembranças de tempos idos, como
integrantes da memória colectiva.
Essas práticas de exercício
devoto seguiam pisadas das antigas peregrinações, de que ainda vão sucedendo
algumas, provindas de gentes de paragens vizinhas e sítios distantes em demanda
de Felgueiras, através de longas caminhadas comunitárias. Remanescentes como
réstia de folclore religioso, que em tempos de antanho era exercido com danças
e bailados litúrgicos, de culto externo durante a Idade Média, algo ocorrido
nos templos religiosos nalgumas ocasiões de festividades, mas interditado
entretanto. Essa influência religiosa cedeu assim parcelas sentimentais ao
espírito popular, na senda de que a parte espiritual sempre atraiu a imaginação
e a crença, reflectindo na poesia singela a ambiência vivida. Antigamente,
quando havia qualquer aflição, pestes e outras doenças, tal como para livrar um
mancebo da tropa ou outro motivo de força maior, pedia-se o milagre ansiado a
um santo ou santa da devoção particular, a quem se apegava a pessoa suplicante
na sua fé, ao que em contrapartida, fundamentada em esperança de atendimento,
era feita promessa de acção de graças. Entre essas promessas estavam caminhadas,
desde a casa de quem tinha a promessa a cumprir até à ermida ou igreja onde se
destinava, levando grupo de pessoas a cantarem clamores em agradecimento,
conforme o prometido. Se o rancho de gente era de seis componentes chamava-se
Serão, ao passo que de nove era Novena. Caso a prece fosse por uma menina
normalmente a promessa era de levar nove meninas a cantarem, se fosse por um
menino era costume um serão de meninos, e se fosse por pessoa adulta tanto iam
só moças adultas como uma mistura de meninas e raparigas espigadas, até
mulheres casadas por vezes. Acompanhadas atrás pelas pessoas pagadoras da
graça: aquela por quem fora feito o voto, que por vezes ia amortalhada ou
levava uma vela de cera do seu tamanho; e a que prometera, indo esta nesse
cumprimento, levava então à cabeça cesta ou açafate com farnel para fortalecer
o rancho durante o caminho. No fim, ao regressarem a casa, era dado a todo o
conjunto de pessoas intervenientes um almoço de recompensa, que por norma
consistia de arroz de feijão branco, servido em companhia de bolinhos de
bacalhau.
Na região de Felgueiras
esses destinos eram vários, percorridos com ajuda de cânticos entoados ao longo
dos percursos da satisfação das promessas. Havia serões e novenas conforme as
proximidades das terras dos santos mais invocados, mas também de mais distantes
paragens, podendo ser a Santa Quitéria, ao monte de seu nome, como à Senhora da
Saúde ou ao S. Cristóvão, a Lordelo, à Senhora do Alívio, na Serrinha, bem como
a santos e santas de devoção mais local, como aos padroeiros das freguesias, ou
ainda fora do concelho à Senhora da Livração, ao S. Bento das Pêras, à Senhora
da Lapinha, entre diversos rumos. Como ainda, muito mais longe, ao Senhor da
Pedra, para lá do Porto e na área de Gaia, conforme ficou nos cantares
populares uma dança da rusga desse nome.
Porém as novenas mais usuais
por esta zona eram, com efeito, as direccionadas ao Monte de Santa Quitéria, em
especial na ocasião da romaria antigamente feita em sua honra. Exprimindo, as
novenas à Santa, uma componente etnográfica significativa da diversidade
etnográfica, através da riqueza dos produtos musicais ligados à vida campesina,
em derivado arreigo religioso profundo.
Já no início do século XX o Padre Henrique Machado registava, no seu volume sobre Santa Quitéria, alguns versos dessas novenas, de feição clássica e cariz religioso:
«Vamos com
todo o fervor
E ardente
devoção
Consagrar a
Quitéria
Nossa humilde
oração.
(...)»
E João Sarmento Pimentel, nas suas “Memórias do Capitão”, relembrava entre algumas festadas e rusgas ouvidas na sua infância por estes sítios, trazendo à memória célebre grupo da terra: «...Nas novenas a Santa Quitéria era um encanto a suave harmonia do conjunto orfeónico onde a Quina de Merouços, ainda garotinha, botava o alto, uma beleza de fé ingénua daquelas lindas e esbeltas raparigas da aldeia:
Senhora Santa
Quitéria
Vinde abaixo,
dai-me a mão,
Eu sou a mais
pequenina
Abafo do coração. (...)»
Ora as novenas a Santa Quitéria, embora se realizassem ao longo de todo o ano, eram mais frequentes no Domingo mais próximo do seu dia, celebrado a 22 de Maio. Sendo a Santa advogada de enfermidades malignas, era associada nas orações com pedidos contra a raiva e o cancro, doenças incuráveis em diferentes épocas (segundo conhecimentos das preces atendidas nos primeiros tempos da devoção, de cuja época foi referida por Frei Bento da Ascensão uma certidão do século XVIII.)
Perduram na transmissão oral algumas estrofes bem conhecidas, entre as muitas cantadas na ida das novenas antigas:
«Santa
Quitéria bendita
Nós p´ra lá
imos agora.
Deitai-nos a
vossa bênção
Ao sair da porta fora.
Senhora Santa Quitéria
Eu daqui a estou a ver
Com dois olhinhos na cara
parece o sol a nascer.
Senhora Santa
Quitéria
Deitadinha na
barquinha
Nós aqui vamos
a cantar
Ela lá descansadinha.
Santa Quitéria bendita
Lindo milagre fizeste
Aqui vem o penitente
A quem vós a vida deste.
Santa Quitéria
bendita
Vem voando
numa pomba
vem abençoar
este povo
da linda terra da Longra.
Senhora Santa Quitéria
Protectora e mensageira
acompanha o nosso rancho
Pela nossa vida inteira.
Santa Quitéria
bendita
No altar de
cravos brancos
Onde o Padre
diz a missa
Domingos e Dias Santos.
Senhora Santa Quitéria
Varrei do caminho as areias,
Já trago as chinelas rotas
Não posso romper as meias.
Senhora Santa
Quitéria
Nós cá estamos
a chegar.
Botai-nos a
vossa bênção
Lá de cima do altar.
(E no regresso eram acrescentadas mais algumas apropriadas, tais como:)
Senhora Santa Quitéria
Nós cá nos imos embora.
Deitai-nos a vossa bênção
Ó sair da porta fora.
(...)»
= Representação do Rancho da Casa do Povo da Longra nas Novenas de Santa Quitéria em maio de 2001 =
Pois estas manifestações
devotas haviam caído durante anos no esquecimento, deixando de ser usual verem-se tais
grupos em caminhada conjunta. Acontecimento que a partir de 1999 voltou a ser
referência, por meio de participação anual de grupos representativos de
Associações, Ranchos Folclóricos e outros agrupamentos das freguesias do
concelho de Felgueiras. Que, de bom grado, vão monte acima num acto de
conservação simbólica e recordação etnológica, sem misturar nem confundir
recreação com devoção, revivendo a consagração que o povo de Felgueiras desde
distantes eras dedica à sua Santa.
Armando Pinto
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