É sabido que ao fazer-se um
arrolamento procura-se não deixar nada esquecido para trás, como sói dizer-se.
Em analogia, numa tentativa de fixação como esta de lembranças antigas do
concelho que nos tocou ao nascer, procurando vincar memórias ainda que ténues
ou completamente esquecidas, por vezes, do que particularizou os tempos
passados desta região Sousã, e consequentemente tendo presente lembrar o mais
possível aquilo de que possamos ter algum conhecimento derivado da obtenção de
informes recolhidos e estudados, merece igualmente registo o papel desempenhado
em eras mais ou menos recuadas pelo pároco de freguesia. Metendo-se assim no
rol de afinidades populares de sabor ancestral o apego das gentes de cada
território ao Abade da respetiva paróquia, ou seja inventariando-se em processo
evocativo esse personagem carismático que foi o denominado pároco da terra na
vivência comunitária do povo seu freguês, que o considerava, como se ouve ainda
da boca de muita gente, o “nosso Padre” - de todos e de cada um dos
paroquianos.
A preponderância desse cargo
de unidade na vida local merece pois que se faça relação de enquadramento, de
molde a que se percebam os diversos estados por que passou o mister.
Abade, nome antigamente
atribuído a clérigo superior, teve inicial significado como responsável de
ordem monástica, denominação que nalgumas ordens religiosas ainda se mantém. No
decorrer dos tempos passou a designar o pároco de uma igreja que tivesse outros
clérigos em funções auxiliares, os quais estavam então sob a sua autoridade,
sendo a igreja respetiva chamada abadia - fosse qual fosse o tamanho do templo
paroquial. Na atualidade é o pároco de uma paróquia ou de várias freguesias
anexas em administração religiosa.
Convém todavia anteceder, em
retrospetiva cronológica, um remirar do aspeto da formação paroquial. A
circunscrição territorial denominada Paróquia, com igreja própria e uma
população a ela adstrita, além de sacerdote incumbido do cuidado das almas, foi
uma consequência da maneira como inicialmente se expandiu o Cristianismo nos
meios urbanos e rurais, onde penetrou popularmente, a originar construção de
templos nos lugares mais indicados, especialmente altos ou medianos locais
fortificados (Castella ou Castelo) e perto das Villas (Villae). Em continuação
ou substituição dos Castros primitivos e os Paços das Villas de antigamente,
com o aparecimento do Cristianismo e dada a sua importância aglutinadora de
comunidade, as Villas foram passando a Paróquias, resultando no sistema que
melhor contribuiu para a organização da sociedade.
As invasões muçulmanas haviam
interferido nas primitivas organizações comunitárias, perturbando o sistema
organizativo hispano-godo herdado do regime das Villas romanas e godas
romanizadas. A intolerância religiosa e as destruições, contudo, foram banidas
com a Reconquista Cristã, sendo definitivamente implantada a organização
paroquial, originando a maioria das paróquias atuais, inicialmente por
iniciativa das autoridades locais. Esses proprietários em geral confirmavam o
clérigo encarregado de gerir o culto e recebiam créditos em troca do Padroado
que exerciam, direitos que foram hereditários nos primeiros tempos... Enquanto
as fundações religiosas apareceram e cresceram em muitos povoados, com doações
que de permeio se sucederam, aumentando o património paroquial. A real origem
das freguesias baseou-se assim nesses antigos povoados, considerados os seus
residentes como filli eclesi, filhos da igreja, congregados mediante alguma
delimitação fronteiriça, em volta de um templo local, de campanário querido aos
ouvidos dos naturais habitantes locais.
Nos primórdios da criação das
freguesias rurais, como eram quase todas nessas remotas eras, após as lutas da
Reconquista, quando estas terras foram repovoadas, desenvolvendo-se a partir de
pequenos aglomerados de exploração agrária (as villas dos presores
estabelecidos como guardiões), foram os povoadores que como grandes
proprietários leigos edificaram construções destinadas ao efeito religioso na
própria comunidade assim criada. Pelo que o pároco era nomeado pelo senhor do
Padroado – fidalgo que detinha direitos inerentes, consistindo o caso em
privilégios concedidos pela hierarquia eclesiástica aos fundadores de uma
capela ou igreja. Conforme rezam as crónicas, esse direito inicialmente baseava-se
em regalias resultantes da gratidão da Igreja para com o benfeitor, cuja
propriedade depois passou aos descendentes, os quais dispunham das rendas de
tudo o que existisse nas terras incorporadas nesse presbitério, além de
nomearem os clérigos para administrarem o culto local nas comunidades
instituídas, e, nalguns casos, mesmo bispos para representatividade da união de
diversas paróquias, ditas já então dioceses. Na evolução temporal o clero (como
poder religioso) acabou por chamar a si essas nomeações, ficando o senhor
feudal (poder temporal ou secular) só com o direito de apresentação,
prerrogativa de indicação de candidato a Prior para o lugar no Priorado, quando
vagasse.
Mais tarde, em doações e
heranças transmitidas por sucessão, algumas regalias do padroado, tais como
posse ou usufruto de propriedades incluídas, pois que haviam quintas de posse
paroquial, foram legadas a mosteiros, transferidas para a Coroa (em poder do
rei, passando como tal a ser prédios reguengos) ou trespassadas a donos particulares,
sem contudo se desmembrarem os bens da igreja local em que as suas terras
estavam incorporadas eclesiasticamente, ou seja sem se diluírem as fronteiras
da paróquia.
Segundo está documentado,
aquando da fundação da monarquia portuguesa já o norte de Portugal estava
dividido em pequenas paróquias, constituídas em redor de igreja de que os fiéis
se sentiam membros, como filhos dessa igreja (filli ecclesiae, expressão latina
de que derivou por uma via filigreses, fregueses; e por outra freguesia). Aí as
freguesias dos sítios provindos de génese goda, cujos topónimos de raiz
germânica revelam a procedência, locais esses que de permeio haviam integrado a
Honra do Unhão e posteriores Julgados de Unhão e Felgueiras, estavam então
integrados na diocese de Bracara, que fora presidida por célebres Pastores,
desde Balcónio, passando por S. Frutuoso até ao bispo Felix (período
suévico-visigótico), de permeio com galeria da Mitra temporariamente sediada em
Lugo (Galiza), iniciada com Odoário e extinta com Vistrário, seguindo-se, com o
avanço expansionista da Reconquista Cristã (de território que estivera ocupado
por mouros), antes ainda da independência do reino de Portugal, a restauração
da Sé de Braga com o histórico bispo D. Pedro.
A interligação de afinidade
galaico-portucalense ficou então patente, entre muitos exemplos, na palavra
comum com que à época se denominavam os párocos: “Curas”, os quais, por
extensão semântica, curavam as freguesias. Estava implantado o Rito Bracarense,
com réstias do Rito Gótico a formar modalidade de liturgia romana implantada
por S. Geraldo, passando desde então a área da Corte Eclesiástica de Braga a
ter esse uso particular que incluía diferentes breviários e missais, entre
diversas diferenças às demais províncias religiosas. O clero superior era já
detentor de direitos de receber pagamentos, sobretudo dízimos que, contudo,
como eram desviados para outros fins, ficando o clero paroquial sem receber
oblatas, passou a existir obrigatoriedade de ofertas dos fregueses para recurso
dos prelados locais.
Entretanto, nessas épocas de
constantes transformações, a região em apreço passou a pertencer ao património
da Condessa Mumadona, fundadora da Colegiada de Nª Sª da Oliveira de Guimarães,
período em que essa comunidade deteve primazia sobre o clero paroquial das
redondezas que se estendiam ao termo de Felgarias Rubeas. Com as paróquias
definitivamente constituídas, entre os séculos XII e XIII, segundo se nota nas
Inquirições de D. Afonso III, os párocos eram ao tempo chamados Prelados, tendo
companhia de um presbítero-capelão que, detendo missão de administração dos
sacramentos, servia de cura (tendo essa denominação nesse tempo o atributo de
coadjutor, um sacerdote auxiliar à espera de atribuição de paróquia).
Com o muito lembrado D. Frei
Bartolomeu dos Mártires à cabeça, houve profunda remodelação Bracarense, sob
cujos domínios estavam dependentes diversas dioceses. Curiosamente, esse
Personagem célebre beatificado em 2001, depois de cerca de 400 anos de processo
canónico, nascera precisamente no ano da atribuição por D. Manuel I do Foral de
Felgueiras, em 1514. E por certo percorreu as freguesias de Felgueiras em
visita, sabendo-se que empreendeu périplo por todas as paróquias da diocese de
Braga, a que a região Felgueirense pertencia. Desde então a formação
sacerdotal, que até ali tinha sido ministrada em mosteiros e até por
acompanhamento particular de prelados amigos ou familiares dos aspirantes ao
sacerdócio (já que era normal nessas épocas seguir-se a carreira canónica por
tradição familiar e outros motivos, mesmo económicos em tempo de morgadios e
diversos motivos mais), passou a partir de 1566 a ser dirigido o ensino
formativo em casa apropriada para a devida instrução, como centro de Cânones à
espécie de viveiro procriador de estudos sacros, denominado seminário. Sendo
assim instituído no país o primeiro estabelecimento oficial de ensino formativo
clerical, o Seminário Conciliar de S. Pedro de Braga, para cuja sustentação foi
lançada uma taxa sobre os rendimentos dos mosteiros e igrejas sob sua alçada,
pelo que todas as paróquias contribuíam através de renda anual (por exemplo,
pelo Tombo novo de S. Tiago de Rande, sabe-se que nesta paróquia ainda em 1743,
quase volvidos dois séculos, era pago tal foro em moedas de réis e colheitas,
para esse fim).
Na continuação dos tempos,
pertencendo as paróquias desta região à Visita da Segunda Parte de Sousa e
Ferreira (zonas atribuídas a visitadores, género de delegados responsáveis por
determinadas áreas, neste caso uma das duas partes em que se subdividia a
parcela entre terras banhadas pelos rios Sousa e Ferreira), os sacerdotes
administrantes das paróquias eram denominados Reitores quando representavam
certo número de Abades e Vigários, párocos de abadias e vigararias das
redondezas, tendo ainda os abades continuação da ajuda de coadjutores, bem como
de clérigos que não exerciam paroquiado, os quais haviam só fixado residência
em propriedades próprias dentro do território paroquial, como também existiam
sacerdotes aposentados dependentes da representatividade do Abade da mesma
paróquia.
O Abade Prior (como
antigamente também era conhecido) surgia então aos olhos da História como
descrevem Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco e Júlio Dinis nalguns
protótipos insertos nas suas narrativas de contos, romances históricos e
novelas campesinas.
Foram acontecendo
transformações, pelos séculos fora, com toda a amálgama de acontecimentos
narrados nos compêndios, misturando-se, distanciando-se e reaproximando-se as
relações do clero com a representação secular, estando o povo sempre atento ao
que o seu Padre dizia e fazia, ainda que pontualmente surgissem cisões ou
choques entre pároco e representantes de Irmandades ou Associações de serviço
paroquial, não havendo porém conhecimento de mais nada que não fosse a superior
imagem difundida pelas vestes e cabeção do Abade Colado, pároco da Colação
(paróquia).
Em 1881 (por Bula do Papa Leão
XIII, executada na prática em 1882), sendo Arcebispo de Braga D. João
Crisóstomo de Amorim Pessoa, as freguesias então incluídas no concelho de
Felgueiras (completo desde 1855) passaram para a diocese do Porto, graças a
reforma de limites diocesanos trabalhados pelo Cardeal D. Américo Ferreira dos
Santos Silva, bispo do Porto, que fora encarregado da execução, através da
referida Bula Gravissimum Christi, definidas que foram as novas circunscrições
diocesanas em 4 de Setembro de 1882. Desse modo este Prelado Portuense, ao
tempo, foi o primeiro que a região de Sousa conheceu na sua ligação à Cúria da
Sé do Porto (em que se lhe seguiram sucessivamente, depois, os bispos D.
António Barroso, D. António Barbosa Leão, D. António Castro Meireles, D.
Agostinho de Jesus e Sousa, D. António Ferreira Gomes, de permeio com
Administração interina de D. Florentino Andrade e Silva, continuando nos tempos
seguintes com D. Júlio Tavares Rebimbas, D. Armindo Lopes Coelho, a quem
sucedeu interinamente como bispo administrador D. João Miranda Teixeira, até à chegada do seguinte bispo residencial, então D. Manuel Clemente).
Para trás foram ficando eras
ainda revistas em memórias pela fisionomia coeva do abade da freguesia, desde o
chapéu quadrado de bicos, mais capa sobre a batina, até sucessor chapéu largo e
casaco comprido, conhecido por “Agostinho” (por ser do tempo do bispo D.
Agostinho), sendo o senhor Abade das sucessivas gerações uma presença assídua
entre os paroquianos, em constantes passagens pelos caminhos e atalhos dos
cerrados, nas idas às casas fidalgas onde era habitual convidado e “dizia
missa” nas capelas próprias de algumas mansões solarengas, mesmo em visitas
amiudadas às casas dos fregueses, a pé ou a cavalo, e parando para conversar
até no meio dos campos onde os lavradores labutavam; além de ser pessoa com que
se podia contar em casa, para qualquer chamamento ou atendimento. Na igreja,
perante o hábito com que chegava o latim da missa aos ouvidos, as atenções
pendiam sobretudo no altar-mor, em que esse respeitável dignatário ficava mais
perto do sacrário e dos cimeiros degraus do trono. Delegado divino que se via a
passear no adro ou pelo passal a ler o breviário como a meditar, se visitava no
escritório de muitos maços de manuscritos carcomidos e amarelados, a par de
estantes com grossos volumes, compartimento aquele da Residência onde estavam
os livros de registos e dos assentos, na mesma casa paroquial onde era dado o
café às crianças da comunhão, de cujas janelas e escadas apreciava as
brincadeiras pueris nos ínterins da catequese, tal como na sacristia ouvia e
dava conselhos, se inteirava das problemáticas e ocorrências quotidianas, enquanto
respeitava e preservava os usos e costumes locais, presidia a cerimónias
religiosas e acontecimentos públicos, criava dotações terrenas atinentes ao
progresso da qualidade de vida (já que os Párocos chegaram a ser, até inícios
do século XX, os Presidentes das Juntas da Paróquia – criadas por Decreto de 26
de Junho de 1830, em substituição da antiga Irmandade da Confraria Paroquial do
Sub-sino, para administração dos rendimentos das igrejas e propriedades
paroquiais, competências que posteriormente, a partir de 1910, seriam
acrescidas da administração civil). Funções aquelas antepassadas que, mais
tarde, evoluíram com incidência no desenvolvimento cultural e fortalecimento
religioso da população, ao passo que o pároco conhecia tudo e todos, como
acorria ao que fosse quando necessário, de portas abertas até ao toque das
Trindades (tal como mesmo depois, conforme texto sobre “Antigos Usos e Costumes
Paroquiais”), sem nunca desperdiçar nem poupar palavras e actos previdentes de
acompanhamento à comunidade, fazendo-se enfim membro da freguesia.
Muitas transformações se
operaram no decurso dos séculos, relativamente aos tempos assim descritos.
Sucederam-se outras cambiantes às anteriores épocas das comissões do Sub-sino e
às transmissões de abadiar as freguesias quase hereditárias (passando de tios a
sobrinhos e por aí adiante, até que começou a haver nomeação dos abades,
enviados como representantes do bispo), chegada que foi a partir de 1926 a era
da Corporação da Fábrica da Paróquia, composta por representantes dos
paroquianos e presidida pelo Pároco, por sua vez nomeado pelo bispo da diocese
para exercer a respetiva paroquialidade.
Na chegada dos anos setenta,
do século XX, sobretudo, fazendo-se já então notar falta de sacerdotes em
número suficiente à renovação necessária, começaram as freguesias desta região
a sentir os efeitos da falha de ordenandos e inexistência de sucessores,
resultando envelhecimento sacerdotal na zona. Sucedeu aí, com a morte dos mais
antigos abades, que se abateu frémito da sua ausência, sem continuidade
sucessora. Desaparecidos assim alguns párocos residentes que eram os últimos
como tais, deixando então de haver sacerdote da freguesia em que o povo via
personalidade-mor e pastor. Substituídos que foram nalgumas freguesias os
párocos próprios por administradores, padres estes com diversas paróquias ao
seu encargo. Apesar do inicial desânimo, certo afastamento ou pelo menos
distanciamento e desorientação, não desapareceu de todo, contudo, a atração
suscitada pela personagem do pároco, notando-se como a sua voz e opinião
arrastam consigo uma significativa parte das pessoas, sendo assim ainda força
motriz de realizações que só a sua imagem de comando e chamariz consegue com
respeito ao materializar de aderências tendentes a realizações, quando o povo
sente interesse do pároco na terra que administra religiosamente, enfim havendo
pontos comuns. Reacendendo-se a chama de fogo que ciclicamente possa estar
mortiça, avivada quando é reforçada a velha afinidade de ligação ao culto
religioso e fraternal. Acrescido do facto de, nos dias que correm, a nova vaga
clerical estar a obter bons resultados na co-responsabilidade solicitada à
comunidade, através de grupos de trabalho nomeadamente, para o empenhamento na
vida comunitária. Como no caso da Comissão Fabriqueira (como é mais conhecida a
Comissão da Fábrica da Paróquia, também chamada de Comissão Económica),
responsável pela gestão das propriedades e defesa dos interesses paroquiais,
cujo desempenho, nos dias de hoje, tem parceria consultiva no Conselho
Paroquial da Pastoral.
Pesados os fastos, fica a
ancestral ligação do povo ao seu Abade como simpática característica da
identidade paroquial desde longos tempos enraizada, como centro da gravidade
destes núcleos populacionais que ainda acorrem ao sentido do sineiro toque da
freguesia.
(Junção de textos em tempos
publicados no “Semanário de Felgueiras”, de material entretanto ainda guardado em
espera, para um possível futuro livro.)
= Como ilustração, apenas, no sentido
de puxar pela memória coletiva, juntam-se algumas imagens de fisionomias de
sacerdotes de ligação felgueirense, uns mesmo naturais e outros de passagem ou
fixação residencial nalgumas das freguesias do concelho, dos quais alguns
entretanto desaparecidos e outros ainda bem presentes entre nós. Naturalmente mais ou menos conhecidos. Desde a
cimeira imagem de dois antigos párocos, que estão devidamente
identificados no livro “Memorial Histórico de Rande e Alfozes de Felgueiras”,
até aos que ficam nas ilustrações distribuídas ao longo do artigo.
Armando Pinto
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