Dizem-me os meus quase quarenta anos de serviço público que
a distância delapida melhor um percurso de vida. Embora, tal como quando se constrói uma casa, nossa, ao
findá-la é que se devia estar a começar, para melhor aproveitamento; também ao findar uma carreira, no caso profissional,
se fica a entender determinadas situações e a conhecer melhor as pessoas.
Ora, passando adiante disso, por ora, fica porém o sabor dileto
dos bons momentos. Como de tanta peripécia vivida no decurso do emprego mantido
no Centro de Saúde da Longra, desde o inicial Posto Clínico da Casa do Povo,
até ao Centro de Saúde, que popularmente sempre foi e será o Posto Médico. Daí
que durante muito tempo eu fosse conhecido, primeiro por Pinto da Casa do Povo,
e mais tarde por senhor Pinto do Posto Médico…
Pois então, no meio de infindáveis e engraçadas situações (a
par com horas lixadas, que mexeram com um tipo, por mais calmo que fosse!),
houve uma situação que não mais esquece. Passada com um antigo inspetor da entidade
distrital de saúde, dos Serviços Médico-Sociais do Porto, a que estavam ligadas
as unidades, quer no tempo em que se incluíam nas Casas do Povo, quer mais
tarde na anexação ao serviço nacional. Sim, num tempo que dava para haver
funcionários a fiscalizar as funções de outros, vindo então certos fiscais
administrativos, por assim dizer, desde o Porto, para ver e passar a pente fino as
escritas, como se dizia, dos chamados postos médicos. Sendo à época muito
temido (na boca de colegas mais antigos) um senhor conhecido por Fontinha, algo rígido, mais pela sua sisuda postura, além de
ser muito exigente e minucioso na examinação das papeladas. José Fontinha, de nome mais
completo, como assinava por fim os relatórios (embora nos registos biográficos apareça publicado Fontinhas, porém sempre foi mais conhecido por Fontinha, enquanto ele nunca ripostou a esse tratamento). Mas que, como alguém dissera e passamos
a saber, se tratava de um poeta conhecido por um outro nome, Eugénio de Andrade,
conforme o pseudónimo que escolhera para a autoria de suas obras literárias.
Daí que se entenda uma passagem dum seu livro:
«...Sou um homem que nunca fez da poesia uma carreira.
Passei trinta e cinco anos a fazer inquéritos e processos disciplinares, sem o
menor gosto mas com grande sentido de responsabilidade, e escrevi a poesia de
que fui capaz nas horas que me deixavam livres a profissão de inspector de uns
serviços do Ministério da Saúde, que ainda aí estão, cada vez piores, ao que
consta ...» - Eugénio de Andrade (1923-2005), in “Poesia e Prosa”.
Pois sim, mas a quem o aturava, nas vezes em que ele
aparecia no local do nosso emprego, não havia poesia nos contactos cara a cara. Não
dando muito uma coisa com outra e, a quem conhecesse suas composições poéticas tal não diria que eram dele, muito menos quem estivesse a leste perceberia como
podia ele ser um vate na matéria. Apesar disso, pessoalmente eu até simpatizei
com ele e nunca tive queixa. Aliás, por das poucas vezes que trocamos algumas
palavras, uma ocasião se ter proporcionado para ele se aperceber que eu tinha
certa simpatia pela literatura, deu para, passados anos, ele me ter autografado
um livro, que mantenho com apreço – apesar de eu nem ser muito apreciador de
poesia livre, quase sem rima, mais voltado sempre a melodiosas rimas
declamadas.
Enquanto isso, o que via com o Fontinha, nas suas vindas ao
Posto Médico da Longra, dava para espairecer o pensamento, por estar sempre a
estudar o ambiente derivado e fazer analogia dum quadro situacionista ao outro
facto. Mas pude presenciar ocorrências divertidas, quase cómicas, para não
dizer mais.
Aconteceu de uma das vezes, quase no início da minha
carreira profissional, uma dessas tais. Estando ainda a trabalhar lá, na parte médica
dos serviços da Casa do Povo local, o senhor Gomes, da Pedreira, um simpático
senhor já idoso, pois acumulava esse emprego com uma reforma (aposentado que
era dum emprego que antes tivera em Lisboa e, ao regressar à região natal,
conseguira esse extra para aumentar o vencimento mensal). Chefiava o Posto o senhor Cunha (Agostinho Cunha), trabalhando em secretária ao lado o sr. Luís (também Cunha), como se sentava mais à frente a D. Emília Costa (esposa do antigo funcionário sr. Jaime). E, entre nós,
contando comigo que era o mais novo no serviço, trabalhava também como novato o
Miguel. Então ainda jovem despreocupado, nada parecido com o mesmo Miguel Lemos
que passou muitos anos no próprio Posto da Longra, que chegou a chefiar mais
tarde. Por isso, numa das fiscalizações que o Fontinha estava a vasculhar,
calhou do Miguel ter de dar conta duma das suas funções, ele que nesse tempo
tinha a seu cargo a correspondência postal e por conseguinte os respetivos
registos, de envios e gastos de selos. E o senhor Luís Gomes, a fazer serviço
de retaguarda, como hoje se diz, andava mais ao brejo, em trabalho de terreno, de
um lado para outro.
Então o Miguel, para o Fontinha o não apanhar desprevenido, antes
de ele ir ver os livros e as pastas, fartou-se de tentar pôr tudo em ordem, tim
tim por tim tim, e como pensou que lá estavam selos a mais, não coincidindo nas
suas apressadas contas os selos registados com os que restavam, tratou de
esconder os que pensou estarem a mais. Só que o tal Fontinha, fuinha como era, escarafunchou
por todos os lados das parcelas e não é que descobriu que as contas estavam
mal, faltando uns tostões na soma das verbas…?! E, de imediato, diz-lhe de
chofre:
- vá, jovem, isto está errado. Ponha já aqui a diferença. Tire lá o dinheiro de
sua algibeira, e reponha o que falta, ora vá… (deixando o Miguel de boca
aberta, muito admirado e de testa franzida, por nem saber muito bem a que propósito vinha isso da algibeira… enquanto nós, sufocando o riso entre dentes, nos divertíamos com a reação
do Miguel ser obrigado a pôr de seu bolso a “massa”, apesar de se tratar duns
trocos…)
Entretanto, estavamos nesse pé, quando entra o senhor Gomes
na secretaria, esbaforido, a arfar pela caminhada de ter ido ao correio, onde levara cartas à estação do Correio da Longra. Com sua barba por fazer, como era costume dele, vendo-se-lhe a
cara com brancos pelos da barba de pelo menos uns dois dias sem ter sido cortada. Estava-se
nos primeiros anos após o 25 de Abril, mas ainda havia resquícios de outros
tempos, quando os funcionários públicos eram obrigados a apresentar boa aparência. Então, mirando-o
de cima a baixo, o senhor Fontinha dispara:
- Ó homem, o ordenado não dá sequer para lâminas? Como
pode andar aqui com esse aspeto?
Todos ficamos à espera do que ia sair. Ao passo que o sr.
Gomes, desculpando-se, ripostou, a tossir no seu catarro de fumador (como quem
diz que nem tinha tempo, por morar longe, o que nem era muito o caso, de permeio com sua linguagem de português arcaico):
- Ó, ohhh, ora, ora, se eu saio de casa de noute e entro
de noute…
Todos afilamos os sentidos, à espera de mais uma reprimenda.
Mas eis que o Fontinha, poeta como era, e apreciador da linguagem clássica, teve
então um remate épico, todo apreciativo e muito sensível…
- Noute... muito bem dito. Sim senhor. É assim mesmo. Esse português até me enche o peito.
Noute... muito bem dito! (Foi repetindo com trejeito de apreço. Quão até esqueceu a esquálida aparência do senhor
Gomes.)
Num baque, lá ficamos todos a olhar uns para os outros. E
mal ele se foi embora, logo que o Fontinha nos deixou em paz, nos fartamos de
rir com aquilo. Tanto que ficou para sempre entre engraçados ditotes memoriais,
nas nossas recordações do tempo passado na secretaria da Casa do Povo da
Longra.
ARMANDO PINTO
(Texto dentre o material a incluir possivelmente num futuro
livro, planeado.)