Este ano tudo está a ser diferente, sendo um ano atípico,
como se diz, por causa da pandemia do Covid-19. E, como tal, não há festas
populares. Tendo até acontecido que a sessão de apresentação do meu livro “Ciclistas
de Felgueiras” foi o último evento público que ainda aconteceu em local de
serviço municipal de Felgueiras, antes do confinamento (tendo ocorrido no
sábado 7 de março, na biblioteca municipal, pois logo na segunda-feira imediata
fechou tudo, encerrando os espaços públicos em Felgueiras, até ao recente levantamento gradual das medidas oficiais, ainda com restrições). Acontece assim, infelizmente, que não vai haver o tão
belo Cortejo das Flores, o qual, depois que foi reativado em finais do século
XX, passou a ser um dos maiores ícones da imagem de marca felgueirense. E é tradição única no país (embora ultimamente tenham aparecido cópias noutras festividades, contudo a tradição original é o cortejo da urbe de Felgueiras para o Monte da Santa Quitéria).
Pois então, este ano, na impossibilidade social de ajuntamento de pessoas, segundo as normas oficiais, vai ter de ser numa espécie de revivalismo virtual, pelas redes sociais, em convívios de conversas em linha... Ficando-se à espera do próximo ano, para o reativar da tradição, fisicamente.
Entretanto...
Atendendo a como esse evento estava já enraizado nas tradições
atuais, na linha dos ancestrais usos e costumes concelhios, por assim dizer, será
de lembrar algo do que se sabe ainda de tudo isso. Relembrando e partilhando
parte do que em anos anteriores foi publicado no jornal Semanário de Felgueiras
dentro das crónicas do autor destas linhas e presentemente está guardado para
um futuro possível livro sobre o concelho:
Festa do Concelho de Felgueiras (com Costume dos Vasos e
Tradicional Cortejo das Flores) na Quadra dos Santos Populares
Todos os anos se fazem sentir evidências da festa que, a
partir de 1911, deu origem ao feriado municipal felgueirense, na continuidade aos
festejos que vinham de tempos remotos. Sendo que os feriados municipais da atualidade passaram a ser instituídos assim com o surgimento do regime republicano. Pois a festa do São Pedro de Felgueiras é muito antiga e quando se deparou a atualização do dia do concelho foi essa festa que mereceu principal referência.
Entre velhas tradições arreigadas à alma popular de
Felgueiras, como por outras zonas também, estão os festejos dos santos
populares, os três santos que o povo celebra por meio de arraiais festivos em
que prevalece algo genuíno do que ao longo dos tempos brotou de realizações do
povo, desde épocas remotas com características próprias no rico folclore local.
No concelho de Felgueiras, como terra nortenha, salvo
efémeras exceções, nunca houve grande tradição de festejar o Santo António em
noitadas, a não ser episódicas festas Antoninas realizadas nos Carvalhinhos
alguns anos, em Margaride. Já a festa de S. João (não na feição paroquial, como
se celebra nas respetivas paróquias, mas na vertente popular) teve antigamente
laivos de primazia em diversas áreas, com realce para o S. João da Longra
durante várias décadas (havendo notícias nos jornais desde inícios do séc. XX),
até haver acabado essa grande festa nos princípios dos anos sessenta, ou seja
muitas décadas depois, ainda no mesmo século XX. Porém, mais que todas foi
sempre a do S. Pedro, efetivamente, em importância e continuidade, pois além de
assinalada devidamente nalgumas freguesias, distinguiu-se sempre das demais
como festa do concelho.
Ora o S. João na verdade fez parte do imaginário
tradicional, transportando costumes ancestrais. Vem ao caso que em noite de S.
João, nalgumas das terras Felgueirenses, até se traçavam destinos de raparigas
solteiras, por meio de hábitos anualmente repetidos para verem a sorte que o
destino lhes antevia. Coisas próprias dos tempos antigos dessa festa popular,
bem como a fogueira na mesma noite, ao escurecer, da qual também três raparigas
de nome Maria iam pela fresca ao quintal apanhar cidreira, para armazenar com
vista às necessidades de chá durante o ano, para as más disposições de barriga.
= Postal ilustrado - Mulher
trajada com cesto alusivo
ao cortejo das flores, em frente ao templo do monte de Santa Quitéria.
Tal festa, do santo mais popular das profanas romarias do
norte, teve preponderância até décadas atrás, havendo sido durante muitos anos
uma das noitadas mais alegres da região, com as estradas e caminhos enfeitados
com arcos pendentes e decorados com garridos papeis recortados, nos quais havia
lamparinas, enquanto pelas bordas estavam espalhados pucarinhos de barro com
cera a arder.
Já a festa do São Pedro, abarcando todo o concelho, tem-se
mantido na sua essência, festejada no monte da Santa - no espaço envolvente do
santuário de Santa Quitéria, sito no monte do mesmo nome, onde existira em
tempos remotos uma ermida dedicada a S. Pedro. Capela essa que era a mais
antiga da região, segundo a “Corographia” do Padre Carvalho da Costa; e que,
derrubada em 1719, foi substituída por templo dedicado a Santa Quitéria,
concluído em 1725.
Antigamente esta festa ali realizada era feita por
iniciativa popular, mas com o tempo passou a ficar à responsabilidade das
autoridades civis, que tomaram a seu encargo a incumbência de manter o costume,
como festa do concelho dedicada ao santo a que Felgueiras pedia proteção, desde
os tempos imemoriais da capela da primitiva invocação. Para fazer face aos
custos havia uma verba inscrita no orçamento municipal, para ajudar a completar
a soma angariada em peditórios, de porta a porta, pelo território concelhio.
Costume que, com variações conforme os tempos e as vontades,
se tem mantido sensivelmente na mesma linha tradicional.
= Frente do santuário e espaço envolvente da igreja de Santa Quitéria com decorações
da Festa concelhia do São Pedro
Em tempos passados, pela noite festiva, por altas horas
quando os foliões regressavam a penates, provindos da noitada da festa, era
costume os rapazes solteiros roubarem vasos de flores das casas de raparigas
solteiras, colocando-os em exposição num local central da terra, da respetiva
localidade de cada grupo, para no dia seguinte verem as moças irem buscá-los.
Por esses tempos costumavam as freguesias fazerem-se
representar anualmente no concelhio Cortejo das Flores de S. Pedro, levado a
cabo tradicionalmente por ocasião da festa. Desfile em que todas as
representações das mesmas figuravam através de rapazes e raparigas, que ao
jeito de cortejo iam até ao cimo do monte em festa. Como curiosidade (por
associação à castidade de Santa Quitéria, ali venerada), era tradição irem
apenas raparigas tidas como virgens, solteiras portanto, para levarem à cabeça
os cestos enfeitados com flores que davam colorido e beleza ao evento...
= Uma imagem do Cortejo das Flores, com raparigas solteiras e jovens acompanhantes – pelos idos da década de 40, no século XX...
Para o
efeito a Câmara lembrava ao regedor de cada freguesia e este encarregava uma
pessoa com disponibilidade para organizar grupo de representação local. Atitude
que depois teve sequência com a Confraria de Santa Quitéria, indo um dos
mesários a cada freguesia proceder de forma idêntica, a rogar pessoa
responsável, no que mais tarde houve continuidade através de comissão de
festas, com igual pedido.
= Deposição final das flores, no epílogo do florido cortejo,
ficando no meio da esplanada todo aquele amontoado multicolor a adornar o
monumento de Nossa Senhora
Nos anos mais recentes, a partir de inícios da década dos
anos 2000, surgiram dentro da novidade, sempre acrescentada no decurso do
tempo, as chamadas marchas populares. Quais desfiles, mediante representações
de localidades do concelho, que, apesar do nome, serão mais apropriadamente
levadas à imagem das Rusgas Sanjoaninas do Porto, vistosas em efeitos coloridos
e, nalguns casos pelo menos, com entoação de letras adaptadas de antigas
cantigas de ligação local.
Algumas das diversas particularidades dignas de memória,
estas, por entre frases alinhavadas no seguimento de evocação ao fundo
tradicional da vida local de outras eras. De que felizmente, ainda vão restando
resquícios revivalistas, atendendo à recuperação em boa hora efetuada desde há
alguns anos, já que o Cortejo das Flores foi recuperado e mantém-se, por meio
de contributo de Ranchos Folclóricos, Associações, Escolas e outros grupos,
cujos elementos participantes elaboram enfeites, custeiam as flores e dão seu
folguedo. Inebriados no perfume natural da coisa pública comum.
Armando Pinto