Espaço de atividade literária pública e memória cronista

terça-feira, 25 de setembro de 2018

Tradição de Alminhas em Terras de Felgueiras


No território concelhio, pese não existirem atualmente castelos roqueiros, que está levemente historiado até terem existido, mas infelizmente desapareceram na erosão dos tempos, ainda há algumas construções que como testemunhos de eras antepassadas se podem considerar património coletivo. Além das igrejas românicas e solares, templos setecentistas e ermidas, pontes e calçadas seculares, como ainda igrejas de eras oitocentistas, também perduram pequenos monumentos, entre os quais, sóbrios ou simples que sejam, merecem particular atenção os que marcam épocas, mesmo que não distantes por demais.

Em ideia de fixação extensiva sobre tais afinidades e vínculos memoriais, mete-se assim em rol de sabor ancestral a tradição da existência das Alminhas, dos Cruzeiros e dos Nichos - dotações religiosas com elos de ligação entre si e que, dentro do campo das edificações comunitárias, por assim dizer, desempenham papel especial no lugar que ocupam.

Deambulando por qualquer parte do nosso país, com maior incidência no norte e particularmente, no caso, pelo concelho de Felgueiras, num qualquer recanto, mais propriamente junto a confluências e nas bermas de caminhos e estradas, encontram-se numa profusão assinalável motivos escultóricos de tradição religiosa como são as Alminhas, os Cruzeiros e os Nichos de tipo capela.
(…)

As Alminhas são antes um marco de religiosidade, construídas em votos de “promessa” ou erigidas para fazerem lembrar o culto dos mortos.

No concelho de Felgueiras, parcela nacional que nos é mais familiar naturalmente, deparam-se nesse género muitos pequenos e singelos monumentos ou capelinhas votivas, sendo autênticos padrões sacros. Podem considerar-se típicas formas de escultura popular, existentes em estradas nacionais e municipais, vielas urbanas, caminhos e atalhos rurais, como ancestrais exemplos de arte iconograficamente expressiva, além de enternecedores temas de fé piedosa.

Primitivamente continham no seu interior “frescos” impressos na cal ou retábulo de madeira a formar painel pictórico de belas pinturas de arte popular em lugar de destaque, representando cenas religiosas. Retábulos votivos algo ingénuos e modestos por vezes, ou mais clássicos noutros casos, mas que de qualquer forma induziam incitamento à devoção do passante em vista à oração pelos falecidos.

Supõe-se haver alguma relação com antiquíssima existência de painéis havidos no tempo do império romano, numa espécie de altares em honra dos chamados lares viales e capitales, génios protetores de caminhos de encruzilhadas e dos campos, aos quais eram dedicados tais oratórios fundidos na crença do povo, quais intuitivas formas de expressão pitoresca do sentir religioso de então. E como a romanização se estendeu também a estes sítios portucalenses do velho condado, pode enquadrar-se extensiva, sem rigores cronológicos, esta necessidade que se expressou publicamente em imagens personificadas de veneração, convidando à devoção e à prece por meio de imagens e legendas capazes de tocar a piedade espiritual.

Contudo, embora tivessem acontecido adaptações dos ritos pagãos com o novo credo, aquando da chegada do Cristianismo, a interligação será apenas de alguma continuidade que não de motivo, sem raiz direta portanto. Aliás essa sua origem confunde-se no tempo, fazendo parte da fisionomia local desde eras mais ou menos recuadas, enquanto a possível ligação sofreu longo desaparecimento pois, dos que existem, os mais antigos, conforme as Memórias Paroquiais de 1758 (in Torre do Tombo), foram erigidos por Confrarias das Almas, instaladas antigamente em algumas das paróquias-freguesias, como foi o caso de Rande com as Alminhas da Renda de Santiago.


É propositadamente que se juntam aquelas duas denominações de paróquias/freguesias, com que são referenciadas as terras conforme a indicação religiosa ou civil, pela explicação necessária: os termos Paróquia e Freguesia são ambos de origem religiosa, embora o vocábulo paróquia nunca se tenha tornado popular (profano), um tanto ao invés de freguesia, mais usado e que terminou por ser oficializado sensivelmente na segunda década do século XX, no período transformador da sociedade verificado após a implantação da República.

Mas retornando ao assunto, pode notar-se que com o decorrer dos tempos, os retábulos aludidos foram sendo alterados por painéis de azulejos, mas sempre com o mesmo sentido bondoso, convidando ao recolhimento em oração pelas almas do Purgatório.

Estes lindos e rústicos pequenos monumentos tradicionais têm por tema central, nos mais antigos, Nossa Senhora do Carmo estendendo o escapulário às almas suplicantes; havendo-os também com motivos da Paixão, ou S. Miguel Arcanjo a suspender a balança da justiça alusiva ao juízo; bem como, em alguns casos, com os santos invocados na região. Os mais recentes foram construídos por meio de promessas de fiéis, cujo incremento resultou de campanhas que atingiram cariz nacional, embora de lavra de sacerdotes da diocese do Porto, primeiro em nova iniciativa do Padre-Monsenhor Francisco Moreira das Neves (a juntar à sua faceta de incansável apóstolo da Cruzada Eucarística das Crianças); e por fim incentivada depois pelo Padre Francisco Babo (natural de Amarante, tendo sido confrade de curso de D. António Ferreira Gomes). Houve então, nessa renovada fase um fomento de restauro aos mais antigos e edificação de novos oratórios. E entre esses, feitos desde as décadas de cinquenta e sessenta, sobretudo, sobressaem alguns com dedicação a Nossa Senhora de Fátima, com e sem os pastorinhos videntes da Cova da Iria. Todos eles, os temas referidos, têm de comum ostentarem legendas alusivas a encimar as chamas e as almas em penas purificadoras.

No carácter puramente estilístico estes motivos escultóricos representam, por assim dizer, expressão sincera de natureza especialmente elevada, sem ligar muito a escolas, como quem diz processos de arte, antes singelidade exalada na fé consubstanciada nas cenas traduzidas e introduzidas nos conjuntos trabalhados em cantaria granítica, na arte nata do povo antepassado. Em construções menos antigas aparecem, porém, alguns edificados em materiais recentes, em especial de cimento.


Na obra literária de índole monográfica, “Memorial Histórico de Rande e Alfozes de Felgueiras”, fazemos outra abordagem geral e debruçamo-nos mais distintamente aos dois exemplares de Rande, as Alminhas da Renda de Santiago, de edificação do século XVIII (pois vem referenciada nas Memórias Paroquiais de 1758), e as Alminhas das Quatro Barrocas da Longra, de construção existente desde 1961 – entre os diversos espalhados no território concelhio onde, praticamente, não há freguesia que não tenha pelo menos um desses monumentozinhos de arte da religiosidade local, integrantes da paisagem Felgueirense e Sousã.

Muito ou pouco cuidados, os modelos de Alminhas que perduram pela região, autênticas belezas conterrâneas, erguem-se formosos, em relevo da tradição. A merecerem catalogação e sobretudo conservação. Porque, como se cantava nestes sítios em anos recuados: “O Cruzeiro e as Alminhas, / desde há muito na nação / foram da alma lusitana / a mais terna devoção”.
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( Texto que, com certas adaptações, conforme o tempo de publicação, teve já lugar no livro “Encontr’Artes 99 – VII Encontro de Autores do Vale do Sousa-V Colectânea de Textos de Autores do Vale do Sousa”, editado em 1999 pela Câmara Municipal de Paredes; bem como no “Monumento do Nicho nas Mais-Valias de Rande”, edição de autor de 2003; quer sob tema e título de Tradição de Alminhas no Vale do Sousa e Felgueiras; quer como Tradição de Alminhas, Cruzeiros e Nichos em Terras de Felgueiras. Para aqui transposto apenas na parte das Alminhas, a propósito de por estes dias de finais de setembro de 2018 ser comemorado em Felgueiras no âmbito das jornadas Europeias do Património o tema das Alminhas. )

Armando Pinto


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