Passados os dias em que as abóboras foram rainhas da festa,
como aconteceu na noite em que tiveram primazia as botefas esburacadas a fazer
de caveiras, chega ocasião de se recordar algumas das antigas tradições
relacionadas que antigamente eram uso da nossa região felgueirense.
Pois então, no tempo outonal do cair das primeiras folhas, após época
das vindimas, assenhoreia-se a era das desfolhadas típicas da região, bem como
derivadas curiosidades da memória local.
Em iniciativas que têm subjacente a preservação de antigos
costumes, nos tempos que correm vão-se ainda realizando algumas desfolhadas
tradicionais, agora normalmente no âmbito de atividades de Ranchos Folclóricos,
mediante os quais elas são levadas a efeito em diversos locais. Tais recriações
dessa antiga festa doméstica popular, além de servirem de convívio de grupos
congéneres, têm o condão de juntar interesse da população, contando quase
sempre com o calor da presença de muita gente curiosa e interessada,
prestando-se ainda isso como jornada de trabalho das agremiações etnográficas, cujos
elementos por norma trajam à maneira antepassada, servindo a preceito para
fixação fotográfica de diversas fases dessa faina, em vista a recolha
documental para acervo de memória arquivista.
No entanto, embora as desfolhadas tenham ganho estatuto
saudosista nas cambiantes mais típicas, ora revivalistas, ainda existem
trabalhos desses, contudo, através de serões passados nos beirais das quintas
que restam de amanho doméstico, realizando-se assim desfolhadas caseiras ainda
no início do século XXI (pelo menos em determinadas zonas), só que em menor
escala e sem grande alarido nem demasiadas atenções, no sentido congregador de
gente, como noutros tempos. Tal qual a maneira de lidar com o desfolhar das
espigas, sem tanto esmero nem precaução de separação das folhas (pois que
antigamente o folhelho tinha aplicações no enchimento de colchões, por
exemplo), já que nos tempos atuais os restos rifados são apenas tidos como
desperdícios.
=Desfolhada particular, no caso numa propriedade da região, em 2002, com gente do Rancho da Casa do Povo da Longra. =
Pois o caso traz a talhe um vislumbre recordatório. Com
efeito, nas desfolhadas antigas, finda a labuta diária e amontoadas as espigas
às cibanas na eira ou no beiral (conforme o aspeto meteorológico), juntavam-se
aos da casa os casais vizinhos mais a filharada e amigos comuns, além da
juventude da zona que ia no fito de namoriscar as beldades locais, através das
danças preambulares, conversas de distração durante o trabalho, abraços da
praxe se fosse ocasião (de quando aparecia uma espiga-rainha de milho-rei
avermelhado) e, por fim, nas danças do encerramento, enquanto todos cantavam,
sempre com preocupação de não deixar qualquer “pombo”, que era o folhelho em
montão preso ao estrepe saído da espiga – devendo as folhas ficarem soltas,
para que servissem ainda para encher colchões e travesseiros de camas, como
para fabricação de mortalhas de enrolar cigarros, passado tempo, depois de
secas e passadas a ferro...
Nesse trabalho de diversão amenizado, ao passo que se
desfolhavam as espigas em conjunto, punham-se grupos à porfia a cantar, homens
e mulheres, rapazes e raparigas, enquanto os cestos eram cheios quase por
brincadeira. E, para além das cantigas, durante a desfolhada comia-se e
bebia-se, pois que na “tira” o anfitrião mandava a mulher (esposa) e os filhos
procederem à distribuição de pão e aguardente ou vinho, fruta e o que calhasse,
após o que toda a gente só pensava na dança habitual. De permeio, na roda de
dança, a roubar o par por costume, cantava-se sempre mais e mais. Na ocasião,
por sistema, uma tocata costumava animar o ambiente, culminando tudo em danças
de roda após preparo do local com habitual varredela da eira com canhos,
seguindo-se então momentos agradáveis com danças de viras gerais, à conquista
de corações. Paixões que, por vezes, quando acirradas em rivalidades,
descambavam em zaragatas, quantas vezes por meio de lutas do jogo de pau.
Mas a quadra em apreço ainda transporta a outras
recordações, pois que também, relacionado com estes hábitos populares, ocorriam
nos idos tempos de antanho outros curiosos costumes no percurso desses
trabalhos comunitários. Assim, na ida para as desfolhadas e no regresso das
mesmas, havia a tradição de a brincar se lembrar as almas do outro mundo.
Então, esse rito alongava-se à proximidade do inverno, quando as noites eram
mais cerradas e frias. Por ocasião dos “Santos” cumpria-se, dessa forma, um
ritual associado ao culto dos mortos. Nessas caminhadas, iluminadas por
lampiões contra a escuridão da noite, indo as mulheres envoltas em xailes,
vulgo malhões, os homens em espessas samarras, e a juventude de quente sangue
na guelra, ciosa de que a noite não tinha cancelas, com suas cantigas acordava
o ar gélido e dava largas à folia. Então os rapazes, para impressionar as
raparigas e espairecerem o ambiente, seguindo os usos, exibiam “botefas”
(abóboras) ocas e esburacadas com recortes a imitar olhos, nariz e boca em
arremedo de caveiras, as quais eram iluminadas no interior com velas acesas –
dando um efeito tétrico, desanuviado no entanto pela algazarra alegre dos
conjuntos de ranchos de pessoas que entoavam bem alto cantigas de seu gosto.
= Conjunto de membros do Grupo de Teatro da Casa do Povo da
Longra, em representação alusiva, como participantes no Desfile da Noite das
Bruxas, pela Longra, na passagem de 31 de Outubro para 1 de Novembro – em 2002.=
Era pois a época dos Finados. Passado Outubro, “que recolhe
tudo”, o calendário traz a evocação dos mortos no princípio de Novembro. O
culto da saudade dos finados, porém, não tinha apenas afinidade religiosa, mas
também relação com a etnografia e o folclore. Aspetos sociais que sempre respeitaram
a memória dos antepassados, desde ereção popular de velhos cruzeiros colocados
em sítios de antigas ocorrências funestas e painéis votivos de Alminhas em
alusão e prece às penas do Purgatório, no sentido de permanente lembrança dos
desaparecidos, até à afirmação patente no cuidado com os restos mortais dos
ente queridos nos cemitérios, em tudo, enfim, evocando-se e sentindo o silêncio
da morte.
Antigamente, em terras do concelho de Felgueiras, essa
índole tinha anual comemoração popular, cujo ritual começava na noite dos
Santos, como o povo aludia ao Dia de Todos os Santos e Fieis Defuntos (assim
celebrados conjuntamente, apesar de distribuídos por dois dias seguidos, em
datas dedicadas pela Igreja). Esses hábitos tradicionais reluziam com a colocação
de luzes em pontos visíveis no exterior das habitações, por meio de candeias,
lamparinas (com pavio a arder em azeite) ou velas, em louvor dos saudosos
defuntos.
Costumes diferentes dos que agora, de finais do século XX
aos princípios do XXI, começaram a ser importados do estrangeiro com a chamada
noite das bruxas, alegando andar o diabo à solta – talvez enfurecido, sabe-se
lá, com a lembrança dos defuntos santificados, mas não só, derivado a tudo o
que anda associado ao espírito nas crenças remotas.
Havendo sobretudo um claro sentido da vida eterna, o facto
espairecia contudo nas tradições próprias da época, pois que só tristezas não
pagam dívidas, conforme se diz. E, com estas e outras formas, o povo sempre
procurou fazer da morte uma razão saliente da própria vida.
Armando Pinto
(Crónica publicada no Semanário de Felgueiras há já alguns
anos, com adaptações para trabalho guardado para um futuro livro, à espera de
possibilidade de publicação).
A. P.
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